Bikingman 1000km

O Bikingman é um campeonato de ultraciclismo que inclui múltiplos eventos em diversos países como: Brasil, França e Marrocos. Estive presente na última etapa, que foram os 1000 km da Serra Geral ocorrido agora em outubro. Minha primeira prova do Bikingman e com tal distância.

A prova ocorreu na Serra Geral, que conta com cenários dentro dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A prova já iniciava com a famosa subida da Serra do Rio do Rastro, passando pelos Campos de Cima da Serra – São José dos Ausentes e Cambará do Sul, Serra do Faxinal, Capão da Canoa, Maquiné, Serra da Boa Vista, Rolante, Gramado, Canela, São Francisco de Paula, Jaquirana, Bom Jesus, São Joaquim, Urupema, Urubici, Bom Jardim da Serra e finalizando com a descida da Serra do Rio do Rastro, totalizando 1000km e 18.000m de ganho a serem completados em até 120h.

Confesso que foi um desafio bem ímpar, pois eu nunca havia feito nada dentro deste contexto, porém a prova possui uma energia tão diferenciada, em que todos os participantes são colaborativos e se unem pelo mesmo propósito. Minha intenção era terminar, então não poupei paradas, sono, alimentação. E sempre cruzávamos por outros competidores que agregavam força.

A prova ela é mais voltada ao Gravel, e como eu tenho apenas MTB, decidi montar uma monster bike. Modifiquei os manetes e o guidom com drop para gravel, o pneu traseiro também foi modificado com espessura de 50 mm. Essa mudança visou ao meu ombro recém-operado, mais tarde eu descobri que o ciclista também desenvolve uma pressão na mão que amortece os nervos dos dedos, então diferentes pegadas também auxiliam nesta questão.

Organizar todos os equipamentos necessários sempre faz parte de qualquer prova de ultradistância, afinal de contas, é uma prova de autossuficiência, portanto, você deve carregar tudo do que necessita. Alimentos e água compram-se no caminho. Levei gel e chocolate. Também equipamentos de primeiros socorros, com importância ao creme anti atrito, vaselina, bepantol, lenços umedecidos, protetor labial, protetor solar, estes sempre à mão. Roupas para frio, roupas de troca, bretelle extra, powerbank. O powerbank também é de muita importância já que precisamos ter sempre lanternas e faróis carregados, bem como o gps de navegação. Eu fui tanto com o ciclocomputador como com o relógio fênix, um servia de backup do outro. Tudo organizado, ocorre o check-in onde apresentamos todo material obrigatório.

Dia 1

Finalmente a largada. Alinhamos às 5h da manhã destino Serra do Rio do Rastro. O dia estava excelente, aliás todos os dias foram excelentes e abençoados, sofremos no primeiro dia com muito vento apenas. O vento já encaixa na subida da serra, chegou a me derrubar uma vez e me fez lembrar das maratonas Uphill, que sempre vinham com uma surpresa de clima, porém a vista estava totalmente aberta.

 Ao entrar nos campos de cima da serra rodamos por mais de 70 km em estrada de chão com vento contra, ali eu pensei “no que estou fazendo aqui”, acredito que foi o único momento de arrependimento, um trecho sofrido, porém sempre estávamos acompanhados de um visual dos pés de macieira em plena floração e muitas araucárias.

Passamos por um trecho em obras de pavimentação entre São José dos Ausentes e Cambará, ali um gancho rasgou meu pneu traseiro, um colega me avisou, colocamos um macarrão para solucionar, mas eu já tinha perdido todo o selante. Era rezar até onde o pneu aguentaria.

Logo cheguei em Cambará do Sul km 190 às 20h, primeiro PC. Jantei, fiz os ajustes e continuei antes que esfriasse para descer a serra e dormir no litoral. Mais 1h30 de estrada de chão até chegar à Serra do Faxinal e na sequência descida até Praia Grande. Dali em diante seria asfalto e plano.

Quando eu cheguei finalmente na BR, resolvi parar em um posto de gasolina em Três Cachoeiras, quando estávamos saindo do posto, houve uma queda de energia geral, ali eu notei que meu pneu estava no chão novamente, rasgado e sem selante, a única forma seria colocar câmara. Já era 1h da manhã, a cidade era minúscula com apenas um hotel, sem luz, decidi dormir por ali e solucionar o pneu no dia seguinte.

Ao chegar no hotel, descobri que não havia mais quartos disponíveis, dois outros ciclistas apareceram e tinham uma cama sobrando no quarto, eu já estava indo dormir de penetra, porém ainda havia um quarto vago aguardando por outro ciclista, negociei dormir até caso ele aparecesse (e ele não apareceu!). Decidi tomar banho frio mesmo, sem luz. Após meu banho, passados 15 minutos, a luz voltou.

Dia 2

Parti após o amanhecer e consegui um rapaz na BR para me auxiliar a colocar a câmara, já que tirar a válvula tubeless estava difícil, só com alicate, ataquei um segundo que tinha, mesmo assim os dois sofreram para tirar, mas de grande valia me ajudaram a colocar a câmara. Segui direção Capão da Canoa, Maquiné para então subir a Serra da Boa Vista (ou Rabisco). Um lugar que seguidamente estou treinando, porém já com 350km no lombo, a história muda.

De alguma forma, meu corpo estava respondendo muito bem, melhor do que eu poderia imaginar, parece que a prova entrou em mim e eu estava vivendo aquela experiência, indescritível explicar. Quando cheguei a Rolante, a comunidade se organizou para nos receber com cuca (pão doce alemão) e o mecânico da cidade estava ali, Laux estava de salva-vidas do pessoal que chegava com problemas. Ele trocou meu pneu, colocou um novo, agora de MTB 2.25, com selante e pude não me preocupar mais com esse problema. Como perdi tempo algum tempo, o plano de dormir em Canela mudou e decidi dormir em Três Coroas e deixar para atacar no outro dia cedo.

Dia 3

Acordei às 3h e antes das 4h eu já estava subindo em direção a Gramado-Canela. Aquela subida de serra era uma das piores, com trechos muito inclinados, mas consegui em 3h já estar lá no topo. Canela PC 2, km 500, metade do caminho e eu estava ainda realizada e desacreditada por tudo aquilo.

Saindo de Canela eram mais 40km de asfalto até chegar em São Franscisco de Paula, onde parei para recarregar toda a hidratação, alimentos, pois dali em diante começaria um trecho técnico, muito isolado e o calor estava por vir.

Desde São Chico até Bom Jesus, muita estrada técnica, com rocha aflorando. Passamos pela rota das barragens, incluindo a barragem do Blang, estradas onde passavam muitos caminhões com madeira de reflorestamento. Em um momento parei na sombra para comer meu queijo Gran Padana, meu momento ápice. 

A cada caminhão, muita poeira. Meu nariz secou e quando percebi estava com sangramento.  O sangramento pendurou por todo o dia, até eu conseguir estancar somente em São Joaquim.

Ainda caminho São Chico-Bom Jesus, parei em Lageado Grande para almoçar, encontrei o mesmo amigo que me auxiliou na troca da câmara e que já tinha almoçado junto outro dia, o Alexandro. Continuando encontrei a Gesibel também, fomos juntas um trecho, até pararmos na aldeia colibri em Jaquirana e a Camila se unir também.

A Gesibel comentou que havia acabado a bateria do trocador e que tinha caído, em algum momento que não vi, já tinha anoitecido e buscamos uma solução, um ponto de apoio para não deixá-la só. Nisso mais pessoas foram chegando, no fim conseguimos apoio para a Gesibel e praticamente montamos um grupeto para escalar destino Bom Jesus, éramos 5 pessoas. Eu, Camila, Alexandro e os dois meninos lá do hotel de Três Cachoeiras. Entendem a lógica… não tem! As pessoas se reencontram depois de muitos quilômetros. Eu perdi as contas quantas vezes cruzei pelo Boeira e pelo Dorr sem nexo algum. Chegando a Bom Jesus km 670 dormimos para atacar novamente cedo, pois viria o trecho citado como mais difícil da prova.

Dia 4

Eu e Camila saímos às 4h da manhã de Bom Jesus, quase em jejum, em um trecho muito técnico de 70km em estrada de chão, rochas aflorando, passando pela barragem do rio dos Touros, pelo rio Pelotas (divisa do RS-SC), até o vilarejo de São Francisco Xavier.

No caminho nos juntamos com outros meninos, comentei que estava já com bastante fome, pois não tínhamos feito café da manhã, o Fernando então comenta que tinha um salame, mas não tinha faca, aí que eu me manifesto com meu canivete. Salvação do café da manhã. Mais uns quilômetros encontramos outra menina, a Lili, que estava deitada com um problema no pescoço. Logo ela foi resgatada por outros meninos, mas descobri outro problema em ciclistas que é esta queda do pescoço.

Desde Bom Jesus até o vilarejo (70km) demoramos 6h30. Em mais 1h, chegaríamos em São Joaquim PC 3, km 750.

 Quando eu raciocinei que já havia pedalado tudo aquilo, foi até difícil acreditar. Descansei uma hora em São Joaquim, busquei uma farmácia para estancar o sangramento do meu nariz. De repente começou a esfriar. Direção à Painel uma chuva fina iniciou, no caminho passei por Javaporcos atropelados na estrada, uma cena até impactante.

Continuei caminho Urupema antes do anoitecer, queria vencer aquela serra antes de esfriar demais. A chuva começou a aumentar e a noite caiu quando cheguei a Urupema. Sem sinal de celular, um breu total, frio. Fui em busca de um sinal de internet para planejar minha noite, pois precisava encontrar um pouso. Decidi dormir em rio Rufino, pois já não daria mais tempo em chegar a Urubici.

Quando estou voltando para a rota, encontro o Juliano de Blumenau e peço para ir junto, pois ali foi um dos poucos momentos em que me bateu um pouco de medo. Acho que o conjunto de fatores, já o cansaço, frio, chuva, havia uma serra para descer, e fui junto dele até um pouso em rio Rufino.

Dia 5

Acordei às 4h e saí em direção a Urubici, cheguei ao amanhecer na cidade e busquei uma padaria para o café da manhã, pois a serra que viria pela frente seria longa. Na padaria havia uns pedreiros, ironicamente encontrei-os no alto da serra com aquele olhar: essa louca pedalou até aqui vindo desde onde…

Acredito que aqueles 70 km de asfalto desde Urubici até Bom Jardim da Serra foram os mais cansativos, o asfalto moía e a MTB não desenvolvia nada, pois a estrada era um verdadeiro tobogã. Mas ali foi onde eu tive as melhores fotos…a equipe me encontrou e dá para notar no sorriso a satisfação.

Em Bom Jardim da Serra iniciou uma chuva que me acompanhou até a chegada, ali o cansaço bateu como nunca, parecia que finalmente eu tinha chegado ao limite, desci a Serra do Rio do Rastro e mesmo chegando a Lauro Muller, os últimos quilômetros pareciam eternos. Faltava muito pouco, mas o cansaço batia forte.

Com 106h24´ cruzei a linha de chegada, ainda tentando entender o feito. Fui a 4ª mulher a concluir, com uma mountain bike, meu primeiro bikingman, primeira gaúcha a fazer os 1000 km dentro do Rio Grande do Sul. Gostei TANTO, que já me pré-inscrevi para o Serra Geral 555 que ocorrerá em março.

Eu vivi uma experiência, algo que me fez refletir sobre minha vida, sobre como enxergo as coisas, e sobre como tudo o que passei nos últimos anos me transformaram em uma nova pessoa. A dor que senti na prova foi uma dor de conforto, comparada a tudo que me transformou em uma pessoa mais forte e resiliente. Passei por momentos extremamente difíceis, todos ao mesmo tempo, mas a vida vem e prova que nenhuma causa é perdida.

Créditos das Imagens
Clemente Diaz
Cesar Delong
Paulo Prezoto
David Styv
Heloisa Koffke

3
Show Comments (0) Hide Comments (0)
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Fique em dia!

Cadastre-se para receber as últimas notícias no seu email