Nos últimos 13 anos, a Craft Bike Transalp se tornou a mais prestigiada corrida de MTB no mundo, conhecida como a mãe das corridas de etapas. Na 14ª edição, que ocorreu entre 16 e 23 de Julho, passamos pela Alemanha, Áustria e Itália e percorreremos 670Km com 21.500m de desnível acumulado, o que equivale a subir mais de 6 vezes do acampamento base do Everest até o seu topo! Nosso objetivo era provar que é possível ter uma vida normal (trabalhando, treinando, comendo, bebendo e se divertindo), e mesmo assim completar uma prova tão difícil como essa. O Mura e eu, representando a equipe JURA VRC, fomos os únicos brasileiros na competição!
Dia 1
Completamos os 98km de prova em 7:30hrs! A prova foi muito bonita, estava um sol lindo e passamos por lugares maravilhosos (daqueles tipo de foto de quebra cabeca! rs).
Foi muita estrada de terra, com muita pedrinha solta e bastante erosão nas descidas. Nas subidas éramos ultrapassados por várias equipes, mas nos downhills detonamos! Estava bem técnico, foi super divertido! Só o final foi mais chatinho porque os 28 Km foram no asfalto.
Ficamos controlando o tempo para aguentar os 8 dias de prova. A preocupação estava em 3 dias mais para a frente que tinhamos programado em fazer em pouco mais de 9hrs, mas tivemos que "socar a bota" porque acontecia sempre com 9hrs de prova.
Dia 2
O 2º dia foi bem dificil, mas fizemos bem. Foram 3 subidas, sendo que a segunda foi animal. Eram 10km e pela primeira vez na vida tive que parar na metade para colocar casaco, e não tirar, como sempre faço. O vento era tanto que foi dificil até empurrar a bike. Batemos 2.400 de altitude e o ouvido até doeu como em avião.
Na terceira e última subida (a mais íngreme) estávamos bem, dentro do tempo que tinhamos programado. Faltavam só 2km para terminar a subida quando o Mura parou, apoiou o cotovelo no banco e de repente….puffff…o pneu dele estorou, um baita rasgo na lateral. O problema foi que demoramos uns 40min para trocá-lo, pois a borracha estava grudada na roda e não conseguiamos tirá-la.
Depois que conseguimos, a bombinha não funcionava… Esperamos nosso amigo costa-riquenho e um casal inglês, que nos emprestaram a bomba deles. Aí foi socar a bota para completar os ultimos 30km sem pegar o corte!
Finalmente chegamos em Mayrhoffen, com 8:30hrs de prova e sem corte! Cruzamos a linha de chegada mais uma vez com a bandeira do Brasil nas mãos!
Dia 3
Este dia era para ser teoricamente mais tranquilo, porém a chuva estava forte e demoramos para sair do hotel para nos molharmos menos. Quando chegamos na largada, vimos todos os gringos super encapotados, com proteção na sapatilha e tudo. Conforme ia andando para o nosso portão ia escutando alguns comentarios sobre neve…
Quando finalmente alinhamos para a largada eu ia sair correndo para comprar uma proteção para minha sapatilha, mas não deu tempo…só faltavam 6 minutos. Fomos para a primeira e única subida do dia, de 30km. Eu estava com muita dor nas costas desde o comeco, e mandei logo um Advil.
Depois de uns 25km chegamos no primeiro water point, dentro do tempo programado. Estava muito frio e quando estávamos quase saindo, comecou a nevar, meio gelo. Esperamos passar e partimos. Em seguida passamos por uma única e santa vendinha, onde tomamos chá e comprei tudo o que tinha direito: fleece, gorro e uma luva gigante de lã. Sorte que era barato, porque senão eu teria comprado de todo o jeito! Perdemos muito tempo, mas valeu a pena porque estava 5ºC e no topo estaria 0ºC.
Faltavam ainda uns 6km para terminar a subida e tivemos um push bike que, apesar de esperado, parecia interminável. Subimos no meio de água, muita pedrona e muito gelo! Demoramos 1hr a mais do que esperado para chegar no topo. Lá em cima nevou de novo, mas fomos direto para o downhill gigante e congelante. Nunca pegamos tanto frio na vida! Faltando 20km para o final, o Mura para de novo… Chain stuck de uma forma que nunca tinha visto! A corrente começou a dar 2 voltas nas coroas da frente… Sorte que ele tem uma mulher mecânica e consegui arrumar rapidinho!!!
Terminamos em 8:20, e ainda estávamos na prova!
Dia 4
Este era o dia mais temido por todos. Tinhamos que percorrer somente 72km, mas com 3500m de subida para ir de Brixen até St Vigil. O percurso era muito dificil, pois tinha uma subida longa de 18km no começo (saindo de 600m para 2100m de altitude) e depois ficariamos em um sobe e desce lá no alto por uns 22km. Depois, um downhill de 10km e mais uma subida de 16km, mas que esperávamos ser mais fácil por ser dividida em 3 picos, com dois planos no meio para tomar um fôlego. Depois disso, seriam só mais 8km de downhill para completar o dia.
Antes de viajarmos eu tinha calculado o tempo que completariamos cada dia de prova, e este percurso estava apontando mais de 9h. Tinhamos que ir mais rapido do que o programado para não pegarmos o corte…
Largamos às 9h da manhã nos sentindo muito bem. Estávamos muito fortes e focados, em um ritimo ótimo e curtindo demais a prova e o visual fantástico. Passamos a primeira subida e os 22km de sobe e desce com uma facilidade surpreendente. Já tinhamos tirado o tempo que precisariamos para completar dentro das 9h de prova. Cheguei até a comentar em um videozinho que fiz nessa hora que o percurso não estava nada de tão dificil como falavam.
Porém, a segunda subida da prova foi desafiadora. O ultimo pico dessa subida era muito ingreme, foi muito dificil. Demoramos bem mais do que esperado, e já estávamos com o tempo apertado novamente.
Terminamos essa subida e vieram os 8km finais de suposto downhill….. Suposto porque logo depois dos 2 primeiros quilômetros de descida, começou um pequeno sobe e desce que não tinhamos programado. Precisavamos ir a "milhão" (como estávamos indo em todas as descidas até hoje) para chegarmos no limite do tempo, mas não estávamos conseguindo. Quando finalmente esse "downhill" se tornou downhill de verdade, em uma ciclovia asfaltada beirando a montanha com aquelas "curvas cotovelo", vejo um carro na minha frente, indo no mesmo sentido.
Um carro em uma estradinha como essa vai muito devagar por causa das curvas que estão a cada 100m. De bike, nós batiamos 68km/h na reta, e diminuiamos para uns 12km/h bem em cima da curva. Um carro normal não consegue freiar tão em cima, e acaba fazendo uma média bem menor.
Desespero total, ferrou!!! O cara não ia nos ver pois estava no mesmo sentido, ia demorar para dar passagem porque a ciclovia era bem estreita, e nós não tinhamos nem um minuto para perder. Pela primeira vez na vida comecei a chorar no meio da prova, mas sem parar de pedalar… Sorte que o cara nos viu logo e bem antes de colarmos ele já conseguiu encostar e nos dar passagem. Nem freiar eu freiei. Ainda bem que estamos em um lugar onde todos respeitam os ciclistas, e todos dão a maior força para os atletas que estão competindo na Transalp! Continuamos a milhão e cruzamos o pórtico somente 8 minutos antes do corte. Conseguimos!!! O unico problema foi que eu não conseguia parar de chorar!!! Eheheh
Ficamos uns minutos parados e veio uma menina muito gente fina falar comigo. Ela era atleta profissional e veio nos dar umas dicas. Nos mostrou onde tinha comida e disse para comermos tudo o que podiamos nas primeiras 2h pós corrida, que é quando o corpo absorve mais a glicose, pois iriamos precisar para o dia seguinte. É isso aí, ainda estávamos na prova!!
Dia 5
Meu aniversário!! O melhor presente que eu poderia ganhar era completar mais um dia dentro do tempo. O percurso desse dia seria mais fácil que o anterior, pois a distância era praticamente a mesma e com 1000m a menos de subida (seriam "só" 2600m de ascenção….rs). Resumindo, deveriamos subir e descer duas grandes montanhas, sendo que no final teriamos 15km de single track, puro MTB, em uma das regiões mais bonitas do mundo, os Dolomites. uuuhhhhuuuu O diretor da prova disse que foi um dos pedais mais bonitos da vida dele!
No briefing da manhã, a noticia de que teriamos mais um dia de neve e que a segunda montanha poderia ser cortada por causa disso. Como estava chovendo e frio desde cedo, saímos da casa com saco plástico nos pés (no melhor esquema tupiniquim mesmo), e com tudo que eu tinha comprado no outro dia de neve. Chegando no local da largada, fomos até a barraca da Craft para comprar um corta vento. Tinhamos 150 euros e cada um custava 100… Compramos para mim, já que sou muito friorenta. A hora que olhei o Mura de bermuda e um skin velho pensei: isso não vai dar certo… Resolvi tentar abusar da simpatia, e pedi para a mulher deixar eu pegar mais um corta vento e pagar no dia seguinte. E nao é que a alemã deixou?!?! Gracas a Deus, pois o foi muito, muito útil !!!
O nosso problema maior não foi o frio em si, e sim o fato de estarmos bem cansados por causa do dia anterior. Eu fiz uma das minhas piores largadas, estava com muita dor no posterior da coxa e não conseguia fazer força. A primeira subida, de aproximadamente 20km, foi interminavel. Empurrei em trechos que seriam bem fáceis de pedalar, somente para mudar o movimento e aliviar a perna. Estávamos indo muito devagar, e apesar de querer muito ir até o final para fazer o tal single de 15k, eu já estava desejando que a segunda montanha fosse cortada. Chegando no primeiro waterpoint ganhei o segundo presente do dia: o aviso de que a prova terminaria 25km antes por causa da neve! Cruzamos a nova linha de chegada dentro do tempo, e ficamos lá no meio do nada, na barraca médica, por quase 1hr esperando uma van ir nos buscar. Sorte que tem muito gringo figura aqui, e apesar do frio na espera, demos muita risada!
Dia 6
Esse era para ser o dia mais dificil e na nossa conta terminariamos com mais de 9h. Mas estávamos fortes e focados, acordamos bem melhor do que o dia anterior e já largamos com tudo. As dores estavam bem melhores, só voltaram mais no final do dia.
Cada dia que passava a prova ficava mais legal, mais técnica. Estávamos nos divertindo muito, conhecendo várias pessoas. Dançamos funk junto com alemães e o mais legal era sermos os únicos brasileiros, pois todos queriam comentar algo.
Quando cruzamos o pórtico, tínhamos até torcida do Brasil! Uma família estava passeando e estavam ali bem na hora que chegamos. Tiramos até foto com eles! rs
Dia 7
Finalmente o tempo melhorou e o frio foi embora, o que colaborou para completarmos felizmente a penúltima etapa da prova.
Foram no total 124km de San Vigil a Trento, com 2600m de desnivel . Uma etapa longa, porém muito rapida, com vários trechos de singletracks, muitos trechos planos e para alegria geral, muito downhill !!!! Quem soube se aproveitar dos pelotões realmente fez a diferença!
Assim como nos últimos dias, adotamos a nossa tática de largar forte, parar pouco e fazer as transições o mais rápido possível . Mas todo o tempo que haviamos "tirado" no início, acabamos perdendo em um engarrafamento enorme dos atletas, em função de um trecho de singletrack.
Dia 8
Esse dia foi emocionante. Tinhamos que fazer 76km com 2.200 de ascenção. Até aí tudo bem, porque para quem subiu mais de 3mil por dia, no ultimo fariamos isso com "sangue nos zoio". O problema é que justamente por ser o último dia, o corte seria com 7hrs de prova, duas a menos que nos outros dias….
A nossa previsão era fazermos o percurso em 6:20h, tranquilo!
Como demoramos para alinharmos para a largada, ficamos de cara para o final. Saimos forte para a primeira subida de 9km, mas logo depois de uns 4km de asfalto tinha um estreitamento para entrar na trilha. Ficamos na fila, perdemos muito tempo para entrar e depois ficamos pedalando atrás de um pessoal bem lerdo nas partes mais técnicas. Mesmo com tudo isso estávamos dentro do horário previsto. A prova tinha que ser feita até o km 42, quando terminaria a ultima subida e depois seria muito asfalto com descidas e falso plano até o km 76.
Porém, depois do 2º water point (km 30), comecei a ver que estávamos atrasados. Começou com 10min e foi aumentando para 30, 45, 1h…. Comecei a colocar o terror no Mura e socamos pra valer. Estávamos andando feito desesperados. Eu não conseguia entender como aquilo estava acontecendo, quando tinhamos errado sendo que estavamos indo mais ou menos nas velocidades programadas. Mas não importava mais, tinha que focar só em pedalar forte!
Eu olhava a altimetria com os tempos que estava grudada no meu guidão, via o horário final de 6:20h e pensava que tinha que terminar com menos de 6hrs, pois nos últimos dias sempre tinhamos que fazer em um tempo menor do que o programado. Chegamos para a última subida da prova, no km 36. Era para ser tranquilo, pois a inclinação era só de uns 6% (fácil para os padrões dessa prova) e seria inteira no asfalto. Porém, como estávamos desesperados, subimos muito rápido e levamos quase metade do tempo programado. O Mura foi me empurrando a subida inteira. De repente, ele desenterra uma musica: "laia laia laiala, laia laia laiala, e só da ela, e ie ie ie ie ie ie ie, bota p f.!". Fomos cantando até o topo, passando muitas duplas que olhavam, achando estranho e engraçado.
Depois da descida tinhamos mais de 20km em um falso plano, com vento contra… Grudamos em uma outra dupla e fomos usando o vácuo, cada hora um puxando o pelotao. Eu olhava toda hora para o relógio e pensava "ferrou, só temos mais 12m fazer 15km, não vai dar…., 10min, 8min, 5min….e pedalando feito uma desesperada para aguentar o ritmo dos caras e não perder o vácuo.
Até que olhei de novo no relogio e já tinha batido 6:05h…. que merda, como isso poderia ter acontecido? No último dia, nas últimas horas?! Como? Não sei…..mas não queria parar, pois apesar de já ter pego o corte, queria que chegássemos com o minimo de minutos depois. Acho que nunca pedalei tão forte. Faltando uns 3km para o final eu não aguentava mais e resolvi diminuir o ritmo para tomar água. Desencanei dos caras.
O Mura grudou do meu lado e disse: "se não fosse o pelote, heim?!"
Eu: "pois é, mas não adiantou nada porque já passaram mais de 6 horas"
Mura: "mas você disse que hoje seriam 7h de prova, nao 6″
Eu: "PQP!"
Acho que estava tão cansada que nem a cabeça funcionava mais! Chegamos exatamente no horário programado, com 6:21h de prova neste ultimo dia, e sem corte!! Completamos os 675km de prova com 21.500m de subida! Somos finishers da Transalp 2011!! Orgulho de representar a JURA VRC e o BRASIL nessa prova casca grossa!!!
Não poderia terminar sem agradecer a todos que contribuiram para essa conquista: Caco (Selva Aventura) e Marcão (Movimento Funcional) pelos treinos perfeitos e divertidos; Mó (Neaf) pelas incansáveis sessões de fisio; DOC – Marcelo Babougluian pelos remedinhos mágicos; Dr Ricardo Trigo pela infiltração salvadora; Marcelão/Ricardinho/Rocka (Central de Serviços) pelas bikes perfeitas; Igor Laguens pelo Bike Fit preciso; Paulistano pelo apoio nas corridas de aventura; e, last but not least, a todos os nossos amigos e familiares, que sempre nos apoiaram muito e fizeram essa torcida maluca que nos ajudou para valer!!!
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