Passei as noites das duas últimas semanas com uma insônia brava. Não tenho insônia normalmente e de qualquer maneira, esta insônia que relato, tem uma explicação. Ao invés de contar carneirinhos, tenho passado noites em branco devido à força de pensamentos dominados por visões de montanhas, glaciares, florestas sem fim, rios bravos e de água gelada, ventos furiosos, frio e calor, fjords rodeados por montanhas geladas, ravinas, cristas e lagos, Patagônia, Patagônia e mais Patagônia. Ou seja, tenho passado as noites sonhando com tudo o que se passou com a equipe XINGU na Patagonian Expedition Race. O que deu certo e o que deu errado? Porque as coisas aconteceram como aconteceram? Até onde chegamos? O que aprendemos? Às vezes, fico planejando o que fazer se eu tiver a oportunidade de retornar a esta prova. Como me preparar? Como preparar a equipe? Quanto de comida levar? Qual equipamento funcionou e qual precisa ser revisto? Porque não conseguimos ser mais rápidos? Qual é a velocidade ideal? Como melhorar os tempos de transição? Qual a estratégia seguir?
Qual o segredo desta prova?
O que não tem explicação é o porque de tanta obsessão por uma 'simples corrida de aventura'.
Ou tem?
A verdade é que a Patagonian Expedition Race me surpreendeu. Não pela dificuldade do terreno. Nem pelos ventos fortes e águas geladas. Nem pela beleza sem fim dos glaciares, rios e montanhas que cruzei. Nem pela dureza do clima tão inconstante e cruel. Nem pelo fato de ter sido impedido de completar a prova, mesmo estando inteiro e sem problemas físicos. Nem pela navegação difícil e desafiadora. Nem pelas travessias de rios bravos e de águas congelantes. Nem pela maluquice que é se deparar com um lago repleto de icebergs após vinte horas varando um mato aparentemente sem fim. Nem pelas doloridas lutas contra os espinhentos arbustos de calafate. Nem pela intensidade do sol, da lua e das estrelas que nos cercavam. Nem pela bondade do povo Chileno. E nem pela quantidade sem fim de amigos conquistados.
Mas pelo fato de que eu não esperava que minha vida fosse mudar tanto após esta prova. De novo, como uma 'simples corrida de aventura' pode afetar tanto a vida de uma pessoa? Claro, a Patagonian Expedition Race não é uma "simples" corrida de aventura. É talvez a maior delas. Tudo lá é impressionante. Tudo que aconteceu por lá foi maior, mais forte, mais belo, mais difícil, mais dolorido, mais emocionante, mais impressionante, mais assustador e mais recompensador que as experiências vividas em outras corridas de aventura. Sem menosprezos, mesmo porque não existem comparações e isto é só uma visão pessoal, um sentimento que estou vivendo neste momento, mas a experiência foi única e acredito que só Patagônia pode prover isso a quem se dispõe a se aventurar por lá.
Amigos Patagônicos – Amigos para Sempre
São tantas coisas boas que aconteceram durante as duas semanas de Patagonian Expedition Race que fica difícil escrever a respeito em um pequeno texto como este. Acho que só a rotina do dia-a-dia e o tempo me darão a oportunidade. Oportunidade de aos poucos, dividir minhas experiências e sentimentos com família, amigos e pessoas próximas e que estejam abertas e dispostas a tentar imaginar as sensações que lá vivi. Mais que tudo, sinto que é uma oportunidade de aprender com a experiência e me tornar um melhor esposo, pai, filho, irmão, amigo e é claro, atleta - na verdade, corredor de aventura, que é bem diferente. Infelizmente, boa parte da bagagem que trago da Patagônia é exclusiva a quem a coleta. Mesmo dividindo, a experiência é pessoal demais. Ainda assim, penso que dividir é uma obrigação. Guardar tanta coisa boa para si mesmo é egoísmo demais. Um desperdício.
Aproveitando o tema "experiências pessoais" e o fato de que é extremamente difícil escrever sobre esta prova em específico, aproveito a oportunidade para dividir o texto de um grande jornalista, fotógrafo e atleta, o senhor T.C. Worley. Este novo amigo acompanhou a equipe segunda colocada na corrida, a GearJunkie, do começo ao fim. Ele também teve a oportunidade de estar lado a lado com os campeões da equipe britânica adidas Terrex em um trekking de mais de trinta horas pelas densas florestas e fjords patagônicos. Poucos dias de convivência foram o suficiente para eu perceber que este cara é um ser humano especial além de um escritor de primeira. Em seu texto final sobre a corrida, publicado originalmente no site www.gearjunkie.com, suas palavras me moveram de tal maneira, que me senti na obrigação de traduzi-lo, para que ele pudesse atingir um maior número de pessoas. Todos que nos acompanharam nesta jornada merecem entender um pouco mais do que sentimos lá na Patagonian Expedition Race e o T.C. soube expressar isto como ninguém:
RELATO FINAL DA CORRIDA NA PATAGÔNIA por T.C.Worley
'Numa perfeita noite de verão, toda a equipe GearJunkie (corredores e repórteres) junto do amigo corredor Marcelo Catalan do Brasil, caminhou pelas calçadas despedaçadas de Punta Arenas, Chile. Eu podia cheirar o oceano enquanto prosseguíamos em direção ao centro da cidade. Após um churrasco regado a chouriço, frango e picanha chilena, caminhávamos com a intenção de amansar nossos estômagos inflados.
Os malucos da GearJunkie. Equipe unida, focada e sem noção! Foto – T.C. Worley
Na praça central da cidade está um grande monumento que homenageia Fernando de Magalhães, o primeiro grande explorador da região. Existe uma lenda que se você beijar o pé de um dos personagens retratados nesta imensa escultura, terás boa sorte e retornará a Punta Arenas algum dia. Gostamos muito desta idéia. "Para o pé!" Gritamos. Já na semana anterior eu havia, gulosamente, me empanturrado com frutas de Calafate – que dizem também te trazem de volta a Patagônia. Normalmente não sou supersticioso, mas resolvi tentar de tudo.
E porque é muito fácil querer voltar para cá. Sem as facilidades normalmente encontradas na cidade, aqui você pode-se dar ao luxo de relaxar e aproveitar a experiência – aqui, a vida forma uma bolha onde o ar puro, a água fresca e as florestas intocadas e selvagens substituem mensagens de texto, chamadas de telefone e prazos a cumprir. A experiência Patagônica é o mais próximo que cheguei de nirvana.
Nirvana
Os corredores sentem-se da mesma maneira. Mesmo com os pés cobertos por bolhas e pernas e braços inchados e arranhados de tanto serem atingidos pela natureza selvagem dos "bosques" da Patagônia, tudo que eles comentavam era somente sobre a beleza das paisagens e da natureza e coisas do tipo: "Incrível, foi o melhor canoagem da minha vida" ou "Puxa, quem dera eu pudesse te mostrar o glaciar que eu vi no último trekking!"
Somos todos privilegiados em poder ter tido as experiências que tivemos. E por termos a oportunidade, mas também a saúde e o corpo funcionando para nos levar além dos "pontos de foto" ao lado de estradas ou das paradas turísticas de ônibus. O mais longe que suas pernas te levavam na natureza selvagem, melhor a experiência. E o quanto mais você empurrava seu corpo, mais poderoso você se tornava. Devo admitir que fico com uma leve inveja da força adquirida pelos atletas das equipes que terminam esta prova. Estes atletas terão muitos outros desafios em suas vidas, mas sempre com a garantia dada pela experiência de saber que eles sempre podem durar mais, agüentar mais e lutar mais que a maioria das outras pessoas.
Lutando contra a floresta. O dia a dia de um atleta na PER!
Foto – T.C. Worley
Corridas de expedição destroem ou constroem uma pessoa. Sementes de dúvida durante um percurso podem rapidamente germinar em terras de dor e fadiga. Se deixá-las criarem raízes, sua corrida acaba! Afaste para longe a dor agonizante, junto do frio desmoralizante e do clima destruidor e você será recompensado com a mente de um guerreiro. Você será capaz de tudo!
Enquanto eu assistia as equipes carregarem a si mesmas sobre os lábios de uma cratera vulcânica na Patagônia e que servia como linha de chegada, vi muitos corpos destruídos. Mas também vi nos olhos destes atletas um nível de satisfação que se aprofundava por milhas. Esta corrida muda vidas. Alguns vão embora tendo deixado a corrida muito cedo devido aos tempo de corte, mas com o espírito de vingança para retornar e vencer. Outros, como Chelsea Gribbon da equipe GearJunkie, vai perder muito sono tentando descobrir como ela poderia ter se esforçado mais para ter sido a primeira mulher a cruzar a linha de chegada.
Foto – GearJunkie.com
A "pequena maluca" Chelsea Gribon, em um dos inúmeros rios, lagos e fjords (com água de degelo) que a equipe GearJunkie se arriscou a nadar só para dar trabalho e andar na bota dos campeões da adidas Terrex. E mesmo depois da hiportermia conquistada em uma destas loucuras, ela ainda está pensando como ir além? Este é o espírito da Patagonian Expedition Race!!!
Durante as próximas semanas, a corrida vai continuar viva em nossos pensamentos. Muitos ainda estão viajando para casa enquanto eu escrevo isto – de fato, eu mesmo estou num aeroporto. E mesmo tendo perdido meu vôo, minha bagagem, ficado sem almoço e sem dormir, estou completamente relaxado. Os cuidados do mundo civilizado ainda estão perdidos em mim, pelo menos por mais alguns dias.'
T.C. Worley
Texto original - http://gearjunkie.com/patagonia-race-final-report
Com o perdão do trocadilho, mas isto tudo é só a ponta do iceberg. A Patagonian Expedition Race ainda me proporcionou uma experiência fantástica com três pessoas que juntando eu, formaram uma equipe sensacional que foi a XINGU (Zinguu para a maioria das pessoas por lá) desta prova. Uma equipe que foi feliz e comprometida com ela mesma durante toda a prova e que tenho certeza soube aproveitar o momento tanto quanto o que relatei aqui.
E para relatar em detalhes sobre a equipe, performance, estratégia de prova, equipamentos, terreno, navegação e os demais assuntos técnicos que nos envolveram durante a Patagonian Expedition Race, necessitarei de mais um milhão de palavras para contar. Portanto, se liguem no AVENTURA NO FIM DO MUNDO, blog realizado em parceria com o AdventureMag e onde prometo escrever constantemente sobre tudo que aconteceu (e que ainda está por acontecer) nesta corrida de aventura no fim do mundo (qualquer sugestão também é bem-vinda!).
Por fim, quero agradecer as pessoas que fazem parte da equipe indiretamente e que sempre estão ao meu lado, sejam me apoiando (ou apoiando a equipe) com coisas materiais ou com a simples força do pensamento e com palavras de apoio e carinho: meus amores Carol e Maria Luiza, sem o apoio de vocês eu jamais seria capaz de chegar até aqui, no fim do mundo, e voltar tão feliz e realizado. LioFoods, parceiros que nos apóiam com carinho e nos mantém fortes, nos alimentando fisicamente e moralmente. ProShock, pequena grande empresa brasileira, presente e futuro do esporte. ProAtiva e Redd Balance, nossos novos parceiros que acreditam nos atletas mas principalmente nas pessoas que compõem a XINGU.
E a todos que torceram e acreditam nesta equipe, digo-lhes OBRIGADO e aguardem, pois em breve tem mais. Que venha a Patagonian Expedition Race 2012!
Marcelo Catalan
Equipe XINGU LioFoods
Copyright©2000-
Adventuremag - Informativo sobre corrida de aventura - Política de privacidade
Proibida a reprodução, modificação e distribuição, total ou parcial de qualquer conteúdo deste website