La Misión Race 2010 - Um Brasileiro fora de seu habitat

Por Glauco A. Chagas - 15.Dec.2010

A chegada pela manhã na rodoviária de Bariloche foi um sopro de ar gelado. O calor me acompanhara desde a saída, em Porto Alegre, passando por uma noite mal cochilada nos bancos do aeroporto de Ezeiza, em  Buenos Aires. Agora, o mesmo ar gelado da Patagônia, que eu avistava agitando o enorme Lago Nahuel Huapi, entrava com força nos pulmões e pelas frestas na minha roupa.
Ônibus para Villa La Angostura, já com o Zortea e o Arruda, amigos,  competidores e duas figuraças. Eu já vinha com a mochila de prova pronta, inclusive com a comida. Diminui a tensão saber que tudo está pronto para a largada. Na janela, os picos da montanhas, ora áridos de pedras, ora brancos de gelo. Mais abaixo, as florestas e o lago azul.  Com esta visão idílica, adormeci. Era segunda-feira, e eu tinha até quarta ao meio dia para recuperar a noite sem dormir.

Eu largo solo, assim como quase todos os 12 brasileiros, que incluem além dos meus amigos gaúchos, os também amigos de São Paulo,  Togumi e Marco. Um outro casal de São Paulo, o Bilkis e a Giuliana– ela com o filho de 3 meses ali do lado! Quatro competidores de Goiânia e uma menina mineira – Ligia, esta em dupla com um argentino. Afora o Togumi, todos enfrentam pela primeira vez a prova, embora com graus variados de experiência em provas de longa duração. Eu já tinha corrido na Patagônia, na corrida de aventura Tierra Viva, em condições um pouco diferentes: em pleno verão e em equipe, mas havia atletas que sequer haviam feito uma corrida de aventura curta, migrando direto das maratonas de rua para a expedição de montanha. Embora admirasse a disposição destes, não deixava de pensar que suas chances de completar a prova eram inversamente proporcionais à quantidade de erros que iriam cometer como iniciantes.

Largada La Misión 2010
Largada do La Misión 2010
© Marcelo Tucuna

Em fim, desejamo-nos sucesso aos que estão ao lado. Quase 600 atletas se amontoam atrás da faixa de largada, incluindo uns 400 atletas solo, e os demais em duplas. Partimos às 12h13 com tempo fechado. Já havia chovido pela manhã, e a previsão era de tempo nublado, com pouca chuva e neve nas partes altas, esfriando e limpando o tempo no dia seguinte.

4 km de estrada plana. Na frente, disparam correndo os atletas que aspiram à vitória, com suas mochilas pequenas e pouca roupa. No meio, onde eu estava, um trote e mochilas beirando os 8 a 10 kg. Mais atrás, o pessoal da caminhada, que aproveita a prova e seus cenários majestosos até o sábado à tarde, e carrega pesadas mochilas de mais de 12 kg. Cada um com seu objetivo. A tralha básica - e obrigatória, inclui capacete, saco de dormir para temperaturas negativas, bivac, luvas, fogareiro, calça corta-vento, fleece, touca, casaco de montanha corta vento impermeável e um kit primeiros-socorros.

Entramos na primeira trilha na mata em fila indiana, é a subida da primeira montanha, das 5 previstas. Larguei sem água, para correr mais facilmente. Paro no primeiro riacho, dos muitos existentes nesta época de degelo da primavera, e um batalhão de atletas me ultrapassam. Primeiro vacilo. A ultrapassagem na trilha  íngreme é penosa e obriga a uma pequena arrancada correndo lomba acima, a qual repito umas 40 vezes. Fico com o coração na boca, devia ter saído mais forte para evitar o congestionamento de atletas que saem na adrenalina, e na primeira subida baixam o ritmo.

Subitamente, a floresta rareia e acaba. A trilha na pedra, bem marcada, agora sobe rumo ao cume do Cerro Bayo, a 1780 mts. Encontro o primeiro campo de neve. Uns poucos metros quadrados, mas me emociono. Nunca tinha andado na neve. Lá no alto, no “filo”, avisto os atletas que lideram. Já vão bem à frente.  Ficamos expostos ao vento frio, e muitos param para colocar capuz, luvas. Não regulei a alça do capacete para ajustar-se com a touca e o capuz, e os dedos  insensíveis não conseguem fazê-lo agora. Tento andar com o capacete aberto, mas em poucos minutos o vento, dizem depois, de mais de 120 Km/hora, leva o bicho que sai rolando e por muita sorte consigo recuperá-lo antes que se precipite no abismo. Prendo-o precariamente acima do queixo.

Glauco Chagas
Glauco A. Chagas conseguiu a melhor colocação brasileira na edição 2010
© Marcelo Tucuna

Já no filo (a linha superior da montanha, por onde se caminha com despenhadeiros dos dois lados), me obrigo a correr e vencer as pedras aos trambolhões, com o auxílio inestimável dos bastões de caminhada, para escapar do vento que desequilibra e arde nas únicas partes expostas do corpo: olhos, nariz e bochechas. Cai uma neve rala... é a montanha se apresentando e mostrando sua força.

Despenco correndo na lomba abaixo da estrada que traz à estação de esqui de Cerro Bayo. Quase perco a entrada da trilha. Opa! Presta atenção no mapa, que a navegação é fácil, mas tem que ser feita. 20 Km completados até o PC1, na estrada (850 m) às 15h47. Bastante gente torcendo e incentivando. Finalmente estou em um grupo que têm o mesmo ritmo. É só ir na mesma balada. Os outros brasileiros ficaram um pouco para atrás.

Agora são mais 43 Km até o PC2, iniciando com uma longa trilha por um vale irregular e de mata, acompanhando um rio, onde o grupo se mantêm num ritmo forte e com pouca dispersão. Ninguém fala, todos concentrados nas raízes e barrancos do caminho, o qual está bem marcado pela organização – os participantes, em geral, não são navegadores hábeis. Chegamos ao PPO no pé da primeira montanha desta perna, com 1800 msnm, vejo alguns competidores trocando a blusa under wear molhada por uma seca ao redor da fogueira, e os imito, preparando-me para a subida. Ainda tinha um fleece grosso na mochila, e este eu pretendia manter seco para a hora de dormir.

Belo visual dos Andes
Belo visual dos Andes
© Marcelo Tucuna

Subida curta e acentuada, e logo termina a vegetação. O vento se abate sobre os atletas. A neve ganha impulso, mas como o vento sopra das costas, rumo ao topo da montanha, vemos os flocos de neve subindo em disparada, nos ultrapassando. As pedras e cascalho soltos, aliados à inclinação, fazem da progressão algo lento e penoso: sobe um pé..., apóia no bastão..., fôrça..., escorrega como em uma duna..., ganhei 10 centímetros. Repete-se a operação por 700 metros, mas as pernas estão ótimas. Agora sinto a diferença que fez o trabalho de musculação realizado e as intermináveis caminhadas com mochila pelas lombas da cidade. Aqui isto é o que vale, mais que o intensivo treino de corrida a que estamos habituados no Brasil.

PPV no topo da montanha, pelo outro lado desço em 10 minutos o que gastei mais de hora para subir, passando por diversos campos de neve congelada, volta e meia escorregando perigosamente . Entro em um vale com floresta e corro na trilha sem parar. Ainda tenho 50 minutos de luz, e pretendo aproveitá-los ao máximo.

Anoitece na mata. Ligo a lanterna e dou por encerradas as corridas.

Às 22h, novo PPO, e toca a subir para outra montanha, desta vez bem menos, uns 400-500 metros, que não havíamos descido tudo desde a montanha anterior, ainda estávamos a uns 1300 metros. Paro rapidamente para fechar casaco e por as luvas, e a dupla que eu tinha alcançado a duras penas, na descida, desaparece morro acima. Inicio sozinho a primeira subida de montanha à noite. À medida que progrido, a neve começa a cair. A princípio, um floco ali, outro aqui. Quando me aproximo do topo, na verdade um platô de uns 3 km a 1700 msnm, neva profusamente.

Sinto um súbito frio na perna e penso: será que a neve está molhando minha calça? Olho para o local e o que vejo me gela por dentro: o mapa sumira do bolso. Paro indeciso na noite nevada e penso: na certa, caiu onde parei para me arrumar. São uns trezentos metros morro abaixo. Volto ou prossigo sem mapa? Ainda não tinha feito um terço da prova, era muito arriscado prosseguir sem o mapa, Decido voltar. Para minha surpresa, não desço 12 metros e está lá o mapa na trilha. Aí que caiu a ficha: o frio que sentira era o mapa saindo do bolso!

O caminho começa a ficar todo branco e o pouco de trilha, a sumir. O patrulheiro que encontrei na subida havia informado que o platô estaria marcado com luzes químicas, mas o reflexo da lanterna na neve que cai não permite enxergar muito longe. Avanço em ziguezague, desviando dos campos de neve e procurando encontrar as luzes que marcam o caminho. Inicio uma longa descida que me leva por trilha na mata ao PC2, às margens do Lago Nahuel Huapi – 800msnm, onde chego com um grupo de uns 15 atletas às 1:30.

Frio foi um dos principais desafio a ser superado
Frio foi um dos principais desafio a ser superado
© Marcelo Tucuna

A comunicação na trilha , à noite, em outra língua que não domino além do trivial, é quase impossível, de modo que estou a mais de 13 horas sem falar com ninguém. Isto me acentua o sono. E chego ao PC disposto a dormir. Mais que isto: estou extremamente cansado, e penso que não vou conseguir sustentar aquele ritmo por mais 12 horas como eu pretendia. Isto me desanima, e decido partir para plano B. No PC2 encontro a primeira tenda da organização onde posso trocar os tickets previamente comprados.

Pego refrigerante, hamburguers e três pacotes de doces e salgados. Como um hambúrguer ali mesmo e me ajeito para dormir junto ao fogo. Sou o primeiro a dormir por ali. Os que chegaram comigo já se agitam para partir. São duas da manhã e penso: se não descansar, amanhã largo esta prova.  Hoje questiono porque senti tanto sono e cansaço em uma primeira noite de prova, já que o máximo que tinha sentido até então nas corridas de aventura expedicionárias fora um pouco de sono ao amanhecer do primeiro dia. Só posso concluir que os desníveis acentuados e o frio intenso, aliados à ausência de parceiros com quem conversar, provocaram aquela situação.

Amanhece. Levanto a cabeça e dezenas de sacos de dormir me rodeiam. Procuro alguém familiar e reconheço a mochila do Togumi, com a característica bandeira do Brasil. Mas nada dele. Durmo novamente. Um pouco? Depois, acordo em definitivo e vejo o Togumi e o Marco, companheiros inseparáveis na prova. Saúdo-os com alegria. Já estão de partida. Vinte minutos depois, às 7h20, estou na trilha, decidido a alcançá-los e manter-me junto a eles pelo maior tempo possível – plano B, chegar. Completei somente 61 Km, e agora são 39 Km até o PC3. O roteiro: longa trilha marcada no vale de um rio, em meio à mata, subindo gradualmente até chegar ao sopé da montanha, e a partir daí, pedra, cascalho e inclinação insana até o topo, longa caminhada  pelos filos e descida abrupta para o PC3. Alcanço meus companheiros e vamos juntos por duas horas. Toga e Marco não dormiram nada na noite anterior. Tocaram direto, e percebo que a falta de sono começa a minar suas energias. Estão com os olhos menores, o que parecia impossível no caso do Toga... O tempo abriu, como previsto, e o Sol aparece entre poucas nuvens. Um lindo dia. Depois de dormir mais de quatro horas, sinto-me disposto e com energia. Embora renitente, despeço-me dos amigos e retomo meu ritmo.

Pouco depois, chego no PPO, disposto ao longo da parte mais alta do vale do rio que subíamos, uma espécie de inflexão e divisor de águas. Para minha surpresa, a fiscal de prova informa que a subida à montanha fora cancelada em virtude das nevascas da noite anterior. O novo trajeto consistia em continuar pelo vale, o qual agora desceria acompanhando um outro rio e chegando ao PC3 pelo lado para o qual estava inicialmente previsto que passaríamos somente quando deixássemos o PC3. Isto me deixou animado, já que, se por um lado aumentava o percurso em cerca de 10 Km, poupava a subida da montanha mais temida da prova. O frenesi do dia anterior voltou, e me dispus a chegar o quanto antes ao PC3. Passei por alguns atletas, sempre descendo o vale e cruzando dezenas de vezes o rio de água do degelo, ocasião em que os pés doíam, mas o frio tinha seu efeito antiinflamatório, e com o sol que me aquecia, era bem vindo.

A prova teve a participação de 12 brasileiros
A prova teve a participação de 12 brasileiros
© Marcelo Tucuna

Ao chegar no próximo PPO, sabia que faltavam 16 km até o PC3, e depois a volta pelo mesmo caminho: 32 Km no total para retornar àquele mesmo ponto. O fiscal me informa que o caminho é plano, o que parecia confirmar o que o mapa dizia. Eram 13:05hs, e calculei que podia fazer este bate e volta, com pequena parada para comer um carreteiro na tenda, em torno de seis horas, iniciando o percurso para a última montanha da prova ainda de dia, já que anoitecia à 21h20. Em passo rápido lancei-me pelo vale aberto e quase sem árvores, rodeado de imensas e assustadoras montanhas, ora repletas de branco gelo, ora na mais áspera rocha. À medida que descia, o vale se estreitava, e o rio, que lá na parte alta era um córrego que me gelava os pés, assumia ares de força incontrolável, águas geladas, transparentes revoltas e muito barulhentas. O rio mais lindo que já vi, mas de impor um certo receio. Também para os atletas as coisas iam se complicando. O que começou como uma trilha plana passou a acompanhar o rio em sua sina de se encaixotar entre montanhas apertadas que se precipitavam direto para as águas. O vale sumiu! Agora andávamos na parede de um cânion, na qual progredíamos mais na vertical que na horizontal, e onde muitas vezes um passo em falso poderia nos lançar escorregando barranco abaixo. Cruzo com os líderes da prova, que vem voltando do PC3. Já caminho a duas horas desde o último PPO, e fico sabendo que ainda tenho duas horas e meia até o PC3. Quatro horas e meia só para ir, descendo e de dia! A volta não sairia por menos de cinco horas. Foi por água abaixo minha previsão, mas ainda tinha esperança de cruzar a última montanha em um horário em que não fosse tão frio, ou seja, antes da meia noite.

Chego ao PC3 às 17h25 disposto a não me demorar. Peço um carreteiro e mais alguns hamburgueres, verifico os pés e constato que as duas meias furadas, as quais eu tinha somente virado no caminho para evitar fazer bolhas, estavam machucando meus pés. Troco pelas meias que pretendia usar somente para dormir, e penduro as furadas por fora na mochila, na esperança de que sequem para uma emergência.  s meias de coolmax da Selene, que usei em diversas provas longas, por serem confortáveis, mostraram-se bastante frágeis desta vez, sendo que antes do PC2 furou a primeira, e o outro pé durou mais dez km.

Em compensação, a escolha do tênis salomom XP pró mostrou-se satisfatória. Embora molhasse com facilidade, em poucos minutos estava apenas úmido, o que não aconteceria com botas ou tênis de goretex. Creio que a melhor alternativa teria sido o cross lite Salomon, pela leveza e tração, sendo que o terreno não tinha tantas pedras grandes que comprometessem a pisada mais “frouxa” deste.  

Às 17h 53 parto do PC3 rumo aos últimos 50 Km. Ainda corro contra o tempo. Demoro 5 horas para chegar ao PPO de onde tinha partido. Posso dizer que foi o trecho mais cansativo da prova, voltar pelo mesmo caminho já percorrido. Ao menos, tanto na ida quanto na volta encontrei com muitos competidores em sentido contrário. Ainda de dia, passei pelo Marco e Toga. Pareceram mais animados e vinham em um bom ritmo, mas disseram que dormiriam no PC3 – ainda não tinham dormido na prova. Já noite, cruzei com o Zortea, corredor de maratonas e ultramaratonas, com experiência em corridas de aventura. Sugeri que dormisse em um local antes do vale se estreitar, já que depois seria difícil encontrar um que fosse  adequado. Depois da prova, o Zortea me disse que seguiu o conselho, e que foi melhor a fazer, já que ele vinha com o pé ruim. Aliás chegou ao final da prova no sábado pela manhã, depois de mais de 24 horas andando sem parar com o pé todo inchado, torcido, como ficaria comprovado em exame já em Porto Alegre. O cara foi muito persistente!

Nestas provas, a diferença básica na forma como os primeiros e os últimos percebem a corrida é que os primeiros sofrem por menos tempo que os últimos.

Neste trecho até o PPV, alcancei aos poucos uma dupla de argentinos, e perguntei se pretendiam subir a última montanha, o Cerro Newbery, ainda aquela noite, ou iam dormir antes. Estavam dispostos a encarar a subida, embora tivessem dormido muito pouco até então. Optei por me juntar a eles para evitar a montanha à noite sozinho. E assim chegamos juntos às 22h50 ao PPV, à beira do mesmo Rio Minero que estávamos a margear nos últimos 34 km, e faltando ainda mais de 30 Km para a chegada. No caminho cruzamos com algumas barracas e uns sacos de dormir escondidos nas moitas da vegetação rala do vale. As barracas geralmente eram de duplas, já que uma barraca dispensava os dois bivacs dos atletas. Parada de 5 minutos junto à fogueira do PPV, onde um fiscal de prova nos traz notícias pouco animadoras: previsão de 4 horas e meia de caminhada até o pico, em trilha pouco batida e com balizamento esparso.

Chegaríamos no alto pelas 3h30 da manhã, quando o frio é maior. Para completar, cruzando um rio 15 vezes. Quanto à trilha, era de fato fechada, no meio do mato e muitos bambus, mas embora tenhamos perdido-a umas três vezes, não houve maiores problemas, bastando voltar ao ponto anterior e seguir descobrindo, de tanto em tanto, as marcas feitas nas cascas das árvores. Já o rio gelado minou nossas energias, e embora nos mantivéssemos o tempo todo em movimento, do joelho para baixo eu já não sentia mais nada.

Ao contrário das outras subidas, esta era lenta e gradual, e ao longo de quatro horas ascendemos dos 1100 msnm do PPV para somente 1450 msnm. A partir daí, a vegetação sumia, e a trilha ficava mais difícil de ser visualizada. Ao entrar em um socavão com neve, perdemos o rastro, e sugeri que atacássemos o pico diretamente, azimutando. Embora parecesse fácil, começaram as bobagens...

O vento não era tão forte, mas fora do abrigo da mata imediatamente se fez sentir, e a noite, embora cheia de estrelas, estava incrivelmente fria. Caminhamos não mais que 100 metros na direção que a bússola indicava, e deparamo-nos com um paredão de pedra. Verifiquei a altitude e concluí que estava uns 40 metros acima do caminho recomendado na carta. Baixamos na esperança de desbordar a pedra, e agora o que impedia o caminho era uma vegetação baixa, mas cerrada. Também não ia dar. Apagamos as luzes, procurando identificar sinal do PC lá em cima, mas nada. Destacava-se perfeitamente contra o céu escuro, sem lua, o perfil das montanhas, que nos cercava quase por inteiro, deixando uma abertura somente por onde tínhamos vindo. Mas na montanha, adquire importância algo a que já estamos acostumados à noite: não se tem a mínima idéia se aquele perfil está a 100 metros de distância, ou a três quilômetros. O mapa e o altímetro indicavam que estávamos perto, mas havia um cinturão acima de nós, e em algumas partes, paredões de pedra que subiam abruptamente. Cinco minutos nesta indecisão e o frio já atacava. Os argentinos já mostravam sonolência e tremores, um reclamou que não estava bem. Conversamos rapidamente e concluí que seria perigoso ficarmos naquela situação. Eram 3 da manhã, e propus que descêssemos até a mata e aguardássemos o dia clarear. Encontramos a trilha de volta e descemos 100 metros. Nas primeiras árvores paramos, em forte declive, e o mais rápido que pudemos entramos para dentro dos sacos de dormir e bivac. Eu ainda tirei a roupa úmida e usei a calça e fleece secos. Os pés estavam “duros”, mas não havia meia seca. Estava bastante preocupado com aquela situação. Se o meu saco, que era para um grau negativo extremo, não suportasse, não haveria muitas opções. O caminho para baixo era longo e com o rio a cruzar interminavelmente. Acima, o vento cortante e o caminho incerto. Ao mesmo tempo que pensava nisto e colocava a balaclava, os argentinos já roncavam, com a roupa molhada mesmo.

Após duas horas e meia de um sono entremeado de tremedeiras de frio, mais por causa dos pés, que o resto do corpo o saco North face que o Marco Alcântara emprestou suportou muito bem, acordamos todos ao mesmo tempo com vozes. Subiam quatro atletas pela trilha, já sob as primeiras luzes do dia. Eram 5h30. Tínhamos deslizado uns quatro metros encosta abaixo dentro dos sacos. Sem pensar muito estávamos de pé, guardando tudo e vestindo corta vento e demais equipamentos. Meias, gorro, luvas, polainas e até os tênis: tudo congelado, duro. Passado o pior momento da noite, olhando aquilo, não pude deixar de me maravilhar. Minha roupa congelada! Quanta novidade para um brasileiro.  “Quebrada” e vestida a roupa, em menos de cinco minutos saímos rápido montanha acima, e em 40 minutos estávamos no topo, onde o vento e o frio eram fortes, mas mesmo assim estaquei e me fiz perder uns três minutinhos, parado, só olhando: Além da minha respiração ofegante, só vento sibilando baixo. O sol nascendo em minhas costas produzia uma coroa de flamejantes picos nevados à minha frente. O tom dourado imperava na parte alta, contrastando com a escuridão em que ainda estavam mergulhadas as profundezas dos vales. Esta visão, vou levar pelo resto da vida.

"Misión Cumplida" após 150 quilômetros
"Misión Cumplida" após 150 quilômetros
© Marcelo Tucuna

Os argentinos não pararam e abriram. A mesma encosta muito inclinada do Cerro Newbery que eu tinha subido duas noites antes, agora eu descia com mais dificuldade. As pernas já não obedeciam. Me dei conta que não tinha comido desde as duas da manhã, e a hipoglicemia avançava a passos largos, mas não tinha como parar para comer naquele frio, e caminhando, impossível: já era um tombo a cada 50 metros. Em um deles quebrei um dos bastões. Com dificuldade cheguei ao abrigo da mata, em um PPO onde sentei e comi tudo que podia por uns minutos, enquanto um cachorro que estava na barraca com o fiscal saiu da letargia da manhã fria e achou um pau para brincar comigo. Com uma mão eu comia, e a outra jogava o pau o mais longe possível no mato, mas o “perro” era rápido e incansável em trazê-lo. Vi logo que eu ia sair perdendo. Bebi água do riacho e tomei meu caminho. Eram 8 horas e a água da minha caramanhola ainda estava congelada. Umas duas horas em um ritmo ainda arrastado, tendo que “negociar” a passagem com cada árvore caída na trilha, mas faceiro da vida. Já podia sentir a chegada a poucos 20 quilômetros, sem mais subidas.

Sob um sol que em nada lembrava o clima da largada, demorei quatro horas para fazer este trecho. Na chegada, o fiasco tradicional e as lágrimas vêm, com a musiquinha da prova, os aplausos e o abraço do amigo Arruda. Às 12h20 completei os 161 Km de extensão e 6.200 metros de desnível da prova, após 48 horas da largada. O primeiro já havia chegado a muito, com 33 horas, e ainda continuariam chegando atletas depois de mim até o mais doce fim, com 76 horas de prova. Surpreso, só então soube que estava na 36ª posição da categoria solo, que largara com aproximadamente 350 atletas. Mais valor dei ao resultado porque sempre tive em mente que aquele era um ambiente estranho, com dificuldades a que os brasileiros não estão acostumados, a começar pelo frio, e indo pelo relevo, a língua, o equipamento e o peso da mochila. O Togumi e o Marco chegaram na mesma tarde, pelas 16 horas. A Ligia também chegou naquela tarde. O Rafael Zortea, com seu pé danificado, na manhã de sábado. Os demais brasileiros não completaram.

A prova teve cobertura da SPORTV, por meio do programa Zona de Impacto e sua simpática repórter Mariana Cartier e equipe, o qual deve ser apresentado em seguida, se é que já não foi. Assistam!

O meu reconhecimento aos colegas de treino em Porto Alegre, e à minha família e amigos, pela força antes, durante e depois da prova. Obrigado.

Glauco Alves Chagas

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