Trilha, rasga-mato, mar revolto e hipotermia

Por Denis Luque - 07.Oct.2010

A correria antes da largada pra checar equipamentos, preparar a bike e ajeitar a mochila já acelera os batimentos cardíacos. O vento atrapalha bastante para plastificar o mapa em cima do capô do carro. Gruda, enrola, embola. As nuvens carregadas me trazem um arrependimento em deixar o anorak no carro e corro pra pegá-lo. O frio me faz mexer as pernas parado no mesmo lugar enquanto o Prof Léo dá as últimas recomendações no briefing da prova. 10, 9, 8... A galera embola embaixo do pórtico de largada! 132 equipes. 3, 2, 1... Vai!!!

Categoria Pró largando com bike do canto da praia no Jd. S. Lourenço, Bertioga-SP. Sentido NE na bússola, logo as rodas ganham a areia da praia de Itaguaré. Opto pelo uso das sapatilhas apesar do trecho curto de 3km na bike. Transição (PC1) para o longo trekking ainda na praia, são mais 6,5km correndo até o início da trilha. O primeiro trecho reto de 3,5km de trilha ajuda a navegação até o PC2. A partir daí, foco e atenção total não são suficientes para seguir sem problemas, pois a trilha some e volta, rasga-mato com azimute fixo pra corrigir a rota e encontrar a trilha novamente, onde a velocidade pode ser maior. Vários trechos alagados no rasga-mato com raízes altas e finalmente a visão do início da serra ajuda a localizar a trilha até o PC3, em boa parte acompanhado do Diogo e da Elaine, outros atletas solo, e depois ao PC4 à beira do rio completando mais 7,5km de treking no mato. Visto o colete salva-vidas e pulo no rio sem cerimônias, atravesso nadando do jeito que estou: capacete, tênis, mochila, luvas, tudo. A água fria dá uma travada nas pernas, que até o momento já somam 20,5km de prova. Os próximos 2km de corrida até o PC5 parecem pesar mais nas pernas que os 20km anteriores. PC5 e transição para a bike.

Tiro mochila, colete, tênis, visto sapatilha, mochila e 1km pedalável até o óleo-duto enterrado... E dá-lhe mais 3km num atoleiro que só o 4x4 do Prof Léo pra sair dali com as próprias rodas! Minha bike olha pra mim, faz cara de choro e tenho que carregá-la no colo. Fim do trecho sobre o óleo-duto, PC7, entro na Riviera de São Lourenço, com um olho na roda e outro no mapa, contorno o labirinto das ruas do bairro até o PC8. Dalí para praia, até o rappel é uma linha reta... de areia movediça! A areia da praia da Riviera parece comer as rodas da bike. Saio OMRP (O Mais Rápido Possível!!) no primeiro acesso às ruas e sigo por dentro até uma estradinha de areia, então ao posto de salva-vidas e de novo pra areia. Ergo a bike na cabeça e atravesso a foz de outro rio. Mais 300m, chego no PC10 do rappel, cadeirinha, mosquetão, ATC, faço o rappel de sapatilha de bike mesmo. Volto pra bike, cruzo até a praia de Indaiá até o PC de transição para a canoagem.

"Vou tirar de letra esse mar" é o meu pensamento. Furo a arrebentação sem problemas, apesar do tamanho das ondas. Mochila presa no caiaque com gancho, uma caramanhola no colo, a remada no mar não rende, pareço mal sair do lugar. Um jet ski dos bombeiros resgata um atleta que tentava vencer o trecho de ondas fortes e marolas gigantes. O primeiro objetivo é contornar o morro entre as praias Indaiá e da Riviera. O segundo é chegar até a outra ponta da Riviera mais ao norte. Vou de braçada após braçada num sobe e desce nas marolas gigantes. Lembro-me daquele filme... "Mar em fúria". A impressão é de que os desníveis chegam a 4m e quando desce vem a mesma sensação de uma montanha russa, aquele frio na barriga. Uma após outra, e meu corpo começa a me lembrar que não sou muito resistente a brinquedos de parque de diversão... 3km remando, vem a primeira náusea e o inevitável vômito. Segundo a Wikipedia, "Vômitos prolongados e excessivos irão depletar o corpo de água (desidratação) e podem alterar o balanço de eletrólitos do corpo." São 4,5km no caiaque e estou quase terminando de passar o morro. O mar parece aumentar sua fúria, algumas ondas quebram próximas às pedras do morro. Alguns atletas viram o caiaque e vão pra água. Segundo vômito. O meu rendimento cai e tudo o que penso é em sair do mar rapidamente. Sigo em direção à areia, penso em arrastar o barco no raso pelos 5km de praia até a outra ponta. Desço no raso e as ondas quebram forte, arrancam o barco da minha mão duas vezes. Não tem jeito, tenho que voltar pro fundo.

Subo no barco, sem náusea consigo remar forte pra vencer a arrebentação. Primeira onda, aquele espumão todo, alinho o barco bem de frente pra onda e inclino o corpo todo pra frente. Passo. Segunda onda quebrando mais em cima, inclino o corpo pra frente. O caiaque inclina até uns 60 graus pra cima e eu passo. Remo mais forte. Terceiro espumão, 40 graus, 60 graus, 80 graus... 180 graus! Seguro na alça lateral pra não perder o barco. A outra mão agarra firme o remo. Não dá pé, subo no caiaque rapidamente antes da próxima onda. Força pra frente de novo até chegar no sobe e desce do marzão. A outra ponta da praia parece um cenário de tão longe. Aos poucos vou vendo o progresso da remada pelos prédios da orla da praia que vão ficando para trás. Vez ou outra vejo um caiaque distante, mais pro fundo, quando coincidem os ápices das marolas gigantes. Por falar em marola gigante... Terceiro vômito. Não consigo mais me alimentar nem beber. Perdi a caramanhola no retorno pra dentro do mar quando o caiaque virou. Sigo remando sem muitas forças, já desidratado e sem carboidrato no corpo pra queimar. O mar continua batendo. Quarto vômito. Náusea forte, não consigo focar a visão. "Só tem um jeito disso acabar logo: remando forte". Acelero o ritmo e consigo ver o movimento de pessoas no PC11. Passo a arrebentação em direção à areia. Equilibro uma onda, duas... A terceira onda quebra em cima de mim, joga o barco na minha cabeça, o mundo vira e eu afundo. Levanto-me, por sorte já dá pé. Fim dos 10km de canoagem. Agarro o caiaque e o arrasto até o PC.

Mal consigo dizer meu número para o staff no PC11. Visto a mochila nas costas, são só mais 300m a pé até o pórtico de chegada pra completar os 50km de prova. As articulações estão duras e o corpo treme de frio. Olhos arregalados, respiração ofegante. Vou trotando até quase a ponta da praia. Passo pelo amigo Marcos, "Você tá bem?" Balanço a cabeça que sim, balanço a cabeça que não. Meu bronzeado vira um pálido branco cera. Só 100m para a chegada. "Cadê o seu cobertor de emergência?" Não consigo responder, só aponto pra mochila nas minhas costas enquanto me aproximo do pórtico. Não me deixo parar, 7h de prova, vou terminar! Cruzo o pórtico! Medalha no pescoço, a tremedeira aumemta, não consigo falar... Hipotermia! Tremedeira, boca rígida, olhos arregalados, pálido, não falo, só respondo às perguntas apontando a mão que balança uns 20cm quando o dedo indica alguma direção. Enrolado no lençol de alumínio, tenho pronto atendimento dos amigos Marcos, Letícia, Guilherme e do staff Guidson. O banho quente e a barra de proteína ajudam na minha rápida recuperação. Obrigado! Depois, mais uns 15min debaixo das cobertas. Pronto, novo em folha!

Denis Luque

publicidade
publicidade
Cadastro
Cadastre seu email e receba as noticias automaticamente no seu email diariamente
Redes Sociais