Relato de Clara Hillmann no Ultra Trail Cerro Rojo

Por: Clara Hillmann

Quando li Nascido para correr de Christopher Mcdougall, passei a imaginar, como todos que o leram, como seria correr com os rarámuris. Anos mais tarde vi que Lorena Ramirez, uma rarámuri de 22 anos, ganhou uma prova incrível, vestindo suas sandálias, sua saia e seu lenço, com sua família e sem nossa parafernália usual. Pensei no meu pai… Quão gostoso sempre foi correr com ele, mesmo com short jeans e polainas, pesando 50kg de água e areia.

Este ano, minha mãe, minha irmã e eu decidimos fazer uma viagem de meninas; destino: México. Já estive neste país incrível e sempre disse que, se não vivesse no Brasil, escolheria o México.
Quando iniciei a pesquisa para elaborar nosso roteiro, digitei Puebla e, graças ao abençoado Google, aquele que tudo sabe e tudo vê, apareceu a prova que Lorena havia corrido e exatamente no período que estaríamos lá! Perguntei esbaforida para minhas companheiras de viagem se uma corrida de 80 km combinaria com um passeio de meninas. Fui execrada por 5 minutos como convém, mas depois de algumas broncas, algumas fotos, a história da prova, a beleza de Puebla, já estávamos as três imbuídas do espírito e, creio eu, adorando a idéia.
A viagem estava perfeita, até que descobri que a prova não era exatamente onde imaginei… Puebla não era apenas uma cidade, mas sim capital de Puebla, uma província!!!! Eu não estaria instalada na cidade da prova, mas sim 130 km e 3 horas da largada, em Tlatlauquitepec. Ops… bueno… depois de alguns contratempos, cheguei na cidade com o carro alugado que eu não sabia nem ligar 4 horas antes, cortando a neblina, muito depois do limite para pegar o kit.

María Lorena Ramírez, UltraTrail Cerro Rojo, México. DIVULGAÇÃO/ DANAI GARCÍA FOTOGRAFIX

A organização foi incrível!! Esperaram, conseguiram lugar para dormir, me cuidaram, orientaram, mostraram onde conseguir comida àquela hora… e não apenas comigo, o carinho deles com todos os atletas e suas dificuldades era inacreditável (sim, não é apenas aqui no Brasil que um esquece o impermeável, outro a lanterna, outro de pensar o que fazer com a filha de 5 anos e assim por diante).

Fui dormir às 2:00 e às 4:00 estava de pé pronta para descobrir que meu camel estava furado e que eu não tinha nenhum outro recipiente. Bati no único quarto com luz e 1 minuto depois Maria Fernanda estava jogando seu Whey fora para me doar sua garrafinha, apoiada por Marcell; Queridos! Antes da prova não havia conseguido comprar o que estou acostumada a comer ou cozinhar minhas amadas batatinhas, mas fazer o que, no México como os mexicanos, enrolei um sanduiche de frango com abacate e chilli (muuuuito chilli), coloquei junto alguns géis que tinha comprado com uma moça muito amada e a minha nova super garrafinha na mochila.

No dia anterior acabaram os alfinetes de segurança, mas sem problema, o número e o controle vão no bolso, dentro do saquinho plástico, que pego emprestado da lixeira mais próxima a largada, por que chovia, e como chovia!

Hora da largada: um clima alegre, todos contentes, sandálias, saias, máscaras e por incrível que pareça, ninguém bufando colado na linha!! Pensei que era como havia imaginado, mas ainda melhor! Demos uma volta na cidade e aquela hora, 5:00 da manhã, já tinham vários moradores na rua sorrindo e nos apoiando! Então entramos nas trilhas e descobri por que tantas cidades do México terminam seu nome em Tepec, que em Náhuel significa montanha. E como subia!!!!

A trilha muito bem demarcada, diversos staffs. Caí um tombo memorável no km 10 e todos pararam para me ajudar, independente de estarmos disputando as primeiras colocações. Absurdamente amáveis e gentis. Pais e filhos correndo juntos, amigos colocando as conversas em dia, gente voltando para arrumar a marcação para que os outros não errassem (o que deveria ser normal na corrida, mas muitas vezes não acontece). Como dizem por lá: “super padre”.

Neblina, chuva, lama, onde está o México árido, que me prometeram????? No km 30 e algo os taquitos, tequilas, mezcalitos e margaritas dos últimos 6 dias começavam a fazer efeito, e uma horda me passou; perdi o primeiro lugar. Dentro da horda, mulheres, saias, huaraches (sandálias)… afrouxei; pensei “que frescura é essa Clara, relaxa, aproveita. Eu vim para isso mesmo, comer pinoles, tomar atole e tomar uma surra“, não como derrotista porém, para quem acompanhava os rarámuris e o crescimento do Trail no México, essa era parte da graça da prova.

Soltei, sorri e continuei faceira. Foco na tortilla da chegada!

Durante todo o percurso diversas crianças e adultos (que as vezes não faço ideia de onde vieram) ficavam na beira das trilhas e estradas de chão oferecendo água em bacias e jarras com canecas para os atletas, o máximo! Como tive o problema com o Camel e estava apenas com a garrafa que não conseguia encaixar em nenhum lugar de fácil acesso, foram salvadores, e até uma garrafinha de mini coca me ofereceram para facilitar a vida.

As crianças foram uma alegria a mais na prova. Davam-nos flores, se escondiam e apareciam, corriam junto (junto nada, na verdade, na frente!!!). Em um momento olhei para um precipício com marcação laranja em cada um dos lados, entre o nada e o coisa nenhuma e empaquei. O pequeno que já me acompanhava por mais de um quilometro, fez cara de tacho, como se fosse a coisa mais lógica do mundo, segurou na raiz e saltou… meu precipício não tinha mais de 1 metro.

No quilometro 46 um perfeito Drop bag! Trocar os tênis, as meias e o mais incrível: comer tortillas com carne, batata cozida (sim!!!! Minhas amadas batatas) e toda uma fartura de coisas deliciosas (em diversos outros pontos de apoio disponibilizavam coisinhas gostosas e uma bebida de milho, atole, que levantava até defunto). Guadajuko!!!!

Segurei no pé de café e vamos que vamos. Falando em café, seria em que quilometro? 60 mais ou menos, três mini meninas me ofereceram um ramo de café, com as bagas meio verdes. Até agora não entendi se era para comer, colocar no cabelo ou usar para afastar as teias de aranha, mas como o pensamento ogro prevalece, saí mordendo…uma ótima decisão. Café: santas xantinas, comi trocentas baguinhas. Lembrei de um artigo que com a maturação ocorria uma redução do teor de cafeína, então, mesmo sem ter lido o artigo possivelmente as crianças estivessem certas, o café meio verde seria perfeito. Independente do efeito físico, o efeito psicológico foi excelente, em menos de 15 minutos me senti como se tivesse acabado de começar a correr. Desci o morro alegre e saltitante.

Começamos a encontrar os corredores dos 50Km, sem saber se quem te ultrapassava estava em uma categoria ou na outra, mas não havia pressa, não havia cobrança. Os cachorros te olhavam pacatos e serenos, em um ritmo mexicano, felizes demais para interromperem a siesta por um reles passante. Pena que os pavos e gansos não seguiam a mesma lógica… nunca imaginei fugir de um pavo com sua carcaça roliça, sua carinha meio ensandecida e rebolado maroto. Assim, fugindo dos penudos, alcancei as outras meninas e comecei a correr com Abi.

A partir daí fomos assim, nos caçando alegremente, até então descobrirmos que na verdade não estávamos mais no caminho certo… volta, pensa, tão bem marcado que estava o caminho, confirmando como ficamos desatentos no meio das provas: havíamos praticamente passado embaixo da fita!!!

Descemos juntas rumo a cachoeira, Abi e eu, revezando a colocação, nos ajudando, conversando. A vista era, mais uma vez, incrível, indescritível. Subimos rumo a chegada, ela em segundo geral feminino e eu em terceiro.

Talvez, se eu tivesse soltado mais as decidas, parado menos para pegar água, tagarelado menos pelo caminho, o resultado seria melhor, mas e a graça do caminho? Foi totalmente perfeito.

Na chegada, tequila, gorditas, abraços, a cidade inteira envolvida, aplaudindo, convidando para conhecer seus estabelecimentos, apoiando, incentivando. A premiação exata, sem troféu (aqueles que nunca sabemos muito bem o que fazer ou onde colocar), com uma remuneração financeira e os brindes dos apoiadores (e eram diversos) distribuídos não apenas para quem estava no pódio, mas entre todos os atletas. Pódios misturados, pódio composto por uma única família (muitas correm juntas seguindo a tradição), estrangeiros e mexicanos de todas as partes do país. Orlando e sua equipe organizaram tudo com tanto carinho e esmero que todos nos sentimos extremamente acolhidos e realizados.

Povo incrível, prova incrível!!! Todo corredor de trilha deveria ter esta experiência.

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