70K Ultra Trail Brasil Ride: a dor é temporária, desistir é para sempre

A Pedra do Índio é um dos cartões postais de Botucatu. O nome se deve a uma formação rochosa em forma de cabeça de índio localizada num pasto na borda da Cuesta (a serra de Botucatu) diante de um vale a perder de vista e no meio do qual se erguem as Três Pedras, três morros que fazem parte de uma formação maior, o Gigante Adormecido. A organização do Brasil Ride escolheu esse local cênico como ponto de partida para os 32 km.

E lá estava eu, por volta das 9h45, alinhado para a largada. Havia combinado com três ex-colegas de sétima série também inscritos que tentaríamos fazer a prova no mesmo ritmo. Luiz Facioli, Daniel Bissacot e Guilherme Mattos – que é descendente de japoneses, mas ganhou o apelido de ‘China’ – são caras que eu não via há uns 25 anos. E que, por uma dessas coincidências, também se tornaram fanáticos por trail running. Seria interessante correr ao lado deles conversando sobre as trilhas pelas quais a vida nos levou durante todos esses anos.

Vídeo de minha participação na prova

Pontualmente às 10h da manhã, o experiente corredor de aventura e diretor da prova, Rafael Campos, deu a largada. Logo no primeiro quilômetro, encaramos uma descida bem técnica pra chegarmos a um vale, onde faríamos um pequeno trecho mais ou menos plano para, em seguida, encararmos a primeira de duas subidas massacrantes que o mapa indicava. Já nessa primeira parte, não consegui acompanhar Luiz, Daniel e China. As duas semanas parado cobravam seu preço.


Da esquerda para a direita: Daniel Bissacot, eu, Luiz Facioli e China

Mas, aos poucos, fui ganhando ritmo e acabei alcançando os caras no início da subida. Para minha surpresa, com o corpo já quente, consegui encaixar um bom pacing na caminhada, a ponto de abrir, junto com o China, uma certa distância na subida para o Daniel e o Luiz. Com 14 anos de estrada, descobri que é assim que meu corpo reage. Começo mais lento e, quase sem perceber, vou ganhando ritmo ao longo das provas.

E assim, China e eu chegamos no km 7, já no topo da Cuesta, onde havia o primeiro posto de hidratação. Com pouco mais de uma hora de prova até ali, minha confiança estava no auge. Naquele ritmo, daria pra completar a corrida em menos de cinco horas, sem forçar demais – o tempo de corte seriam 8 horas. Virei um copo de Coca-Cola oferecido pela organização (não sou fã de refrigerante, mas naquela circunstância, fazia todo sentido) e avisei o China que sairia na frente, seguindo num ritmo compassado antes de pegarmos a segunda descida (também bem técnica) e, em seguida, fazermos cerca de 6km em terreno relativamente plano tendo, na sequência, a subida mais pesada da prova.

Justamente nesse trecho plano, senti uma dor na lateral da coxa esquerda a mesma que, anos atrás, me fez quebrar numa São Silvestre – o problema, pelo que pesquisei, chama-se Síndrome de Atrito da Banda Ílio Tibial (SABI).

Só que na São Silvestre, faltavam 5 km pra terminar uma corrida em asfalto. Aqui, seriam 20km considerando uma subida pesadíssima. Procurei ignorar a dor e seguir os conselhos do China, dando pequenos trotes entre as caminhadas. Corremos mais uns 2km e quase no início da subida, tropecei num galho e levei um tombaço. Pior que as inevitáveis escoriações foram as câimbras que me atacaram as duas panturrilhas quando tentei levantar. O China, mais do que rapidamente, me ajudou a alongar e, antes de recomeçar, tomei uma mais que cápsula de sal pra evitar que o problema voltasse. Aprendi, nas corridas de aventura, que essas capsulas podem ser cruciais para que as câimbras não acabem com sua prova. E o melhor é tomar logo que sentir os primeiros sintomas.

Seguimos com dor e tudo e começamos a subida mais pesada da prova, 300 metros de desnível em cerca de 2,5 km. Àquela altura, por volta das 13h e com um calor de cerca de 32 graus, algumas torneiras e bicas de água em propriedades pelas quais passávamos colaboravam para refrescar. A tática é encharcar o boné na água e colocá-lo de volta na cabeça. Ali, sofrendo com o calor, ficava me perguntando como é possível completar provas como a temida Badwater, com seus mais de 200km no deserto dos Estados Unidos. Em livros como o de Dean Karnazes (“50 Maratonas em 50 Dias”) a narrativa dessa proava soa empolgante e heroica. Mas debaixo daquele calor nem tão pesado do Brasil Ride, fazer uma prova dessas parece missão impossível.

Voltemos à subida. O primeiro trecho, em single track exigia uma dose de técnicas de escalaminhada, mas apesar das dores, subi numa boa. Na sequência, a trilha, ainda bem íngreme, seguia por um campo aberto. Àquela altura, o maior problema não era mais a perna, mas o cansaço puro e simples. Sob a sombra de uma árvore solitária em meio ao pasto, um pequeno grupo de corredores se aglomerava para sentar e retomar o fôlego antes de seguir até o topo.

Corredores de rua talvez nunca entendem, mas, na montanha, parar sob uma árvore pra recuperar as forças não é demérito nenhum. Pelo contrário, é quase um dever moral.

Seguimos eu e o China, um passo depois do outro rumo ao topo. Ele se distanciou e segui sozinho. Com a perna gritando e o esforço que a subida impunha, comecei a ouvir uma voz interior que todo corredor de montanha conhece: “O que que, diabos, eu tô fazendo aqui?” Felizmente ou infelizmente, o fato é que já conheço essa voz interior e sei lidar com ela. Desistir nunca foi uma opção. Pode parecer clichê, mas a frase atribuída a Lance Armstrong faz sentido nessas horas:

A dor é temporária. Desistir é pra sempre.

Alcancei o topo da Cuesta e segui para o segundo posto de hidratação no km 19 com a autoconfiança renovada. Afinal, já havia cumprido 2/3 da prova e deixado pra traz as maiores subidas. Restando, ainda 5 horas antes do corte, dali pra frente, seriam 12 km menos difíceis. Restava saber se minhas pernas dariam conta. Decidi que, quando chegasse nesse posto de hidratação, faria uma parada mais longa, pra alongar os músculos e comer.

Numa prova longa e desafiadora como o Brasil Ride, os postos de hidratação oferecem bem mais que copinhos de água. Bananas, biscoitos cream craker e melão faziam parte do ‘cardápio’. Comi, me alonguei e aproveitei pra ligar pra minha esposa, Renata, calculando que terminaria dali umas duas horas. Superestimei o tempo de propósito, consciente de que, àquela altura, com as pernas gritando, mesmo as descidas não seriam tão fáceis.

Seguimos pelo asfalto em uma estrada vicinal pra cruzarmos a rodovia Marechal Rondon (uma das principais da região) e, sem seguida, iniciarmos última e longa descida em estrada de terra. Nessa parte, corri um longo trecho conversando com um senhor chamado João Javera. Do alto de seus 60 anos, ele me contou que já participou de diversas maratonas e algumas ultras. Caras como ele são o melhor exemplo de que dá pra envelhecer com dignidade, sem abrir mão da paixão pelo esporte.

Saímos da estrada de terra pra pegarmos uma descida em pasto, num trecho conhecido como Gramadão e que termina na entrada de um sítio que há uns 20 anos pertenceu a meu avô já falecido. Não me considero um cara muito espiritualizado, mas passar por ali me evocou a presença dele e de minha avó.

Fechei os olhos por um segundo e agradeci ao seu Abílio e à dona Marica pela benção de poder estar ali, no esporte que mais amo, encarando aquele desafio.

Terminadas as descidas, encaramos uma pequena trilha paralela a uma linha férrea. Àquela altura, repetia pra mim mesmo que terminaria a prova, mesmo que fosse engatinhando. Ouvindo aquilo, dois ou três atletas ao meu lado começaram a dizer a mesma coisa e aquilo se tornou nosso mantra de final de prova. Saímos da trilha e caminhamos por uns 900 metros sobre a linha de trem já bem próximo da usina Indiana, base do evento e local da chegada.

Durante os treinos pra provas longas, quase todo corredor se imagina cruzando a linha de chegada. É a técnica da mentalização bem, conhecida. E, claro, comigo não foi diferente. Me imaginava na reta final sob um turbilhão de emoções, talvez umas lágrimas escorrendo. Mas na prática as coisas não são bem assim. Tudo o que saiu na linha de chegada foi um grito de desabafo meio desafinado, mas suficientemente alto pra que eu recebesse palmas do público. As histórias às vezes não terminam como a gente imagina. Mas os últimos capítulos não precisam ser sentimentais pra serem emocionantes.

Agradecimentos
Concluir os 32 km do Brasil Ride não teria sido possível sem a ajuda destas pessoas: Renata, minha esposa, pelo apoio incondicional, especialmente na chegada. Meus sogros Loreda (pela inspiração) e Vanderlei – pela carona mais que providencial. Wladimir Togumi (pelo espaço aqui na Adventuremag), Rafael Campos e Mário Roma. Murilo Ravanini, pelos treinamentos. E os amigos China, Daniel e Luiz.

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