Relato de Fernanda Aragones na Ultra Fiord 2018 e o encontro com um puma

Autor: Fernanda Aragones

Finalmente chegou o tão esperado dia 31/03, quando começou nossa jornada. Saí do trabalho e fomos direto para o aeroporto de Guarulhos onde pegamos o primeiro vôo, rumo a Santiago, para a nossa tão esperada prova: Ultra Fiord. Eu e meu marido, Eduardo, nos preparamos o ano inteiro para essa corrida. Chegando em Santiago tivemos que esperar mais 8h nosso voo decolar para Punta Arenas, onde chegamos somente na manhã seguinte. Alugamos um carro e dirigimos até Puerto Natales, uma viagem de mais umas 4h.

Estávamos bem cansados do stress todo da viagem e esperas e ficar sem dormir direito. Foram 21 horas desde que saímos de São Paulo até chegarmos na casa que alugamos. Chegando lá arrumamos nossas coisas e fomos pegar nosso kit corrida e deixar nosso drop bag. Fizemos tudo que tínhamos que fazer para a prova e fomos jantar. Meu marido começou a se sentir mal no restaurante e pediu para ir embora… passou mal a noite toda. Acordamos e fomos para o hospital e soubemos que ele tinha pego uma virose bem forte. A corrida era no dia seguinte e ele não poderia mais correr. Ficamos super chateados, pois nos esforçamos tanto, treinamos tanto e ia ser nossa primeira corrida de 50km e íriamos fazer juntos. Mas infelizmente não deu e tive que ir sozinha mesmo e prometi que traria a medalha para ele.

Na noite do dia 02/04 às 21h estava marcada a palestra técnica em português para falarem um pouco mais sobre a prova. Mas achei que ir numa palestra que começava às 9h da noite um dia antes da corrida era muito tarde. Eu precisava descansar e ainda tinha que cozinhar batatas e preparar os sanduiches para levar para a prova. Então resolvi ir na palestra em espanhol, que era mais cedo e por muita sorte Fernando Nazário estava lá. No final dessa palestra ele nos deu uma palestra privativa com várias dicas da prova.

Ok, já estava tudo certo! Voltei para casa, terminei os lanches, repassei a mochila para ter certeza que estava tudo ali e onde cada coisa estava.

Na noite de 02/04 dormi super mal. Ficava rolando na cama de ansiedade e tristeza do meu marido não poder participar. Levantei às 4h da manhã, me arrumei e um amigo me deu carona até o ônibus que me levaria até a largada no Hotel Rio Serrano. O ônibus saiu as 6h10min e chegamos no hotel quase 9h. O nervosismo não estava cabendo em mim…

Começou a prova e logo nos primeiros metros perdi uma garrafinha. Voltei para pegar e me distanciei um pouco dos outros corredores e fui seguindo a trilha. E vi uma pessoa correndo um pouco mais para frente, corri, corri e quando chegou no final da trilha não tinha nada, era um rio. Tinha certeza que estava no lugar errado e resolvi voltar pelo mesmo caminho e procurar as marcações. Encontrei com o corredor que estava na minha frente olhando para todos os lados, procurando o caminho certo, pois ele também percebeu que estava indo para o lugar errado… e eu fui no embalo seguindo ele…

Depois de um tempo procurando, encontramos o caminho certo. Logo no começo fiz um extra de 4km. Até aí tudo ok! Corri, andei, subi. Nessa parte tinha bastante subida, praticamente toda a subida da prova estava concentrada nessa parte. Cheguei no tão famoso Chacabuco e confesso que fiquei um pouco decepcionada, pois estava esperando que estivesse tudo branquinho, cheio de neve. Tinha só neve derretida que virou água muito gelada e charco, ótimos para manter os pés e pernas molhados e praticamente congelados do começo ao fim. E muitas pedras.

Passando o Chacabuco fui seguindo em frente e pronto: quando vi estava perdida de novo! Comecei a ficar um pouco tensa, pois eu pretendia entrar no bosque antes de escurecer e estava começando a achar que não daria mais tempo…

Eu estava um pouco confusa. Às vezes eu achava que estava perdida e tentava seguir as pegadas e elas iam para todos os lados. Parecia que outras pessoas andaram perdidas por ali também.  Depois descobri que não estava perdida, as marcações é que estavam muito espaçadas mesmo. Havia trechos com quase 2 Km sem nenhuma marcação e as pegadas me confundiram.

Quando olhei no relógio eram 18:30 e estava começando a escurecer, então resolvi me preparar para a escuridão que estava por vir. Tudo era muito difícil, pois tinha que parar, tirar a luva, tirar mochila, pegar as coisas e arrumar tudo de volta, e não podia demorar para fazer isso pois o frio era congelante. Um minuto parada já era o suficiente para começar a tremer de frio. Peguei meu headlamp e fiquei pronta para correr a noite pela primeira vez. Me perdi por umas 2 horas e já estava bem escuro. Quase não dava para enxergar um palmo à frente mesmo de headlamp. Meu plano de chegar no bosque antes de escurecer tinha ido por água abaixo. Já era de noite e não sabia nem quando ia chegar no bosque. Continuei seguindo em frente e estava decidida que no próximo PC eu iria desistir da prova, pois não tinha psicológico pra continuar. Estava em pânico por dentro e adeus a medalha que eu havia prometido para o Eduardo.

Chegando no PC eu falei para o fiscal que eu não podia mais, não tinha mais cabeça para continuar. Estava com muito medo de me perder sozinha de novo e ter algum problema. Nisso, tinham 2 outros corredores em volta da fogueira, que aparentemente tinham desistido da prova também: Nick, o mesmo americano que tinha encontrado perdido no inicio da prova e ele estava bem mal, quase tendo uma hipotermia; e o Harry. Conversei um pouco com o Harry e ele me disse que gostaria muito de terminar a prova, mas também não conseguiria sozinho, então resolvemos nos unir e tentar terminar a prova juntos e o Nick resolveu ir conosco…

Fomos caminhando e nosso psicológico já estava abalado por tudo. Nos falaram que chegaríamos no próximo PC em 4 km e já tinha passado uns 8km e nunca chegava. Até para caminhar era muito difícil, pois não dava para enxergar praticamente nada de tão escuro que estava e era muito difícil encontrar as poucas marcações que tinham, pois elas eram bem pequenas e nem todas eram luminosas.

Era charco para todo lado e de todo tipo: o que afundava até o tornozelo; o que afundava até o joelho; o que cobria quase a coxa toda; o mais molhado que dava para escapar fácil e o mais duro, que parecia uma areia movediça que ia te sugando para baixo e tinha que ter muito cuidado para puxar a perna para não machucar e nem perder o tênis.

O Nick não aguentava mais a prova e nós não aguentávamos ele. Estava estressado, cansado e reclamava o tempo todo de tudo. De repente ele viu um bicho bem perto de nós, se assustou e nos avisou. Viramos e só dava para ver os dois olhos brilhantes de um puma nos observando de uma árvore bem pertinho de nós. Os três entraram ainda mais em pânico, mas sem fazer barulho para não irritar o animal, nos juntamos e continuamos andando como se não tivesse notado que ele estava lá.

E finalmente chegamos no PC Tenerife, o último e onde o Nick desistiu da prova. Sobrou só o Harry e eu. Os meninos do PC falaram que a trilha era super fácil, não tinha erro. Era somente seguir em frente e em 3 horas caminhando estaríamos na chegada! Acreditamos neles e fomos tentar terminar a prova mesmo com o tempo estourado.

Saímos à meia noite e a previsão era de chegar na meta às 3h da manhã. Olhei no meu relógio e ele marcava 55km. Uhuuu, eu já era ultramaratonista!!! Que alegria! E ainda nos faltavam mais 12 km para terminar.

Fomos caminhando e conversando sobre o bosque, as luzes. O Harry foi me mostrando as montanhas e percebemos que estávamos andando em círculos, pois estávamos indo para dentro do bosque outra vez e as montanhas que ele tinha me mostrado agora estavam do lado oposto. Nessa hora deu um imenso desanimo. Todo nosso esforço tinha sido em vão. Já era quase 5h da manhã e nada de achar o caminho certo!

Tinha a esperança que a organização ou alguém notasse que já tinha passado do nosso horário previsto e enviassem o resgate… Naquele momento eu já estava fantasiando como seria nosso resgate: de helicóptero ou que viria uma equipe de resgate a pé ou a cavalo. Enfim, fiquei viajando e andando tentando achar o caminho certo, pois se parássemos para esperar o resgate com certeza teríamos um hipotermia e adeus vida.

Depois de muito andar e pensar, conseguimos finalmente achar o caminho certo às 7h da manhã do dia seguinte da minha largada! Estava morta de fome e quase sem energias. Ainda tinha metade de um sanduíche e um gel que estava economizando, pois não sabia quantas horas mais iriamos ficar ali. Às 8hs começou a clarear e estávamos muito felizes, pois já dava para ver a luz que vinha da chegada em Estancia Perales e vimos o portão. O Harry já tinha participado da Fiord outras vezes e se lembrava do portão. Nesse momento tivemos certeza que finalmente estávamos no lugar certo.

Comecei a ouvir uns gritos. Não dava para ouvir direito, mas tive a impressão de ter ouvido a voz do meu marido. Achei que estava delirando, pois estava esgotada, estressada, com fome, frio, sono. Logo depois ouvi outra vez meu nome e aí tive certeza, era meu marido! Peguei meu apito e comecei a apitar e eles começaram a gritar mais e mais. Que alegria! Era ele mesmo! Comecei a correr e eles estavam vindo em nossa direção, meu marido e mais duas meninas voluntárias que foram fazer nosso resgate. Corri e pulei nos braços dele, choramos um pouco juntos. Um choro de alívio, felicidade uma sensação muito boa de estar de volta, viva e inteira.

Foi muito bom reencontrar meu amor e saber que eles estavam me procurando. Eles estavam mais desesperados que nós. Achavam que tínhamos morrido ou algo bem ruim tivesse acontecido. Fazia muito frio e na primeira tentativa de resgate durante a madrugada eles também encontram com uma puma com seu filhote. Tiveram que abortar o resgate até ela sair de perto da trilha…

Do ponto que eles nos encontraram faltavam só mais 3 km para acabar. Continuamos juntos e quando vi a chegada, ainda tive forças para correr e pular!

Estourei no tempo, vi paisagens maravilhosas, passei muito frio, muito medo, encontrei com uma puma, quase tive um ataque do coração, pensei muito, em tudo! Me controlei o tempo todo para não me desesperar e piorar toda a situação. Fiz a prova mais longa em quilometragem e de tempo, dei o maior susto na minha família e vivi a maior aventura da minha vida e sinto que nasci de novo.

E ainda por cima ganhei a medalha que eu tanto queria. Lá parecia uma eternidade, mas passei por isso tudo em 23h32m.

Se eu voltaria para Fiord? Ainda não sei, mas bem provável que sim.

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